“É o primeiro filme que torna impossível continuar vendendo mentiras e mitificações sobre escravidão por mais de um século”
Manohla Dargis, New York Times
Ponto um: “12 Anos de Escravidão” levou o Oscar de Melhor Filme. Para os mais velhos, este selo seria um atestado de melodrama clichê água com açúcar. Mas a Academia mudou, como vimos recentemente com as premiações de gente mais autoral, como os irmãos Coen, Danny Boyle, Ang Lee, Martin Scorsese, entre outros.
Ponto dois: “12 Anos de Escravidão” é o novo filme de Steve McQueen, diretor de “Shame”. Já este selo faz cair por terra o atestado citado no parágrafo anterior.
Este é um filme seco, direto e sem firulas. Os planos em sua maioria são longos e sem cortes – isso diminui a manipulação das emoções do espectador, pois não há closes em detalhes nem o ritmo fica mais acelerado. A música de Hans Zimmer é relativamente contida e até repetitiva – sem aqueles crescentes que são um verdadeiro convite às lágrimas. Chiwetel Ejiofor entrega a interpretação de sua vida, extremamente suave e contida, com algumas necessárias explosões – ao contrário daquela apelação ao melodrama que a maioria das interpretações de personagens sofridos entregam. A câmera está quase sempre mais afastada, enquadrando os atores com teleobjetivas – não há closes de olhos cheios de lágrimas, mãos tremendo, nem nada do gênero. Por outro lado, há um belo uso de detalhes de objetos, como partes de violinos.
É nesse cenário mais frio, quase que como um olhar de fora – não nos esqueçamos que o diretor é inglês – que “12 Anos de Escravidão” brilha. A obra esbanja realismo e credibilidade. Por isso, esqueça aquela visão do negro coitadinho, do fazendeiro carrasco e da saudade da África. Esqueça também os negros condescendentes de “E o Vento Levou…”, ou cômicos de “Django Livre”, ou tristinhos da série “Raízes”. Esqueça também todas as palavras e discursos de “Lincoln”. Estamos diante de uma história de injustiça. De um triste passado da humanidade. De chicotes rasgando as costas de seres humanos. De pessoas acorrentadas como animais. Separadas de suas famílias. Tratadas como cavalos. Sem dó. Sem piedade.
Aqui, temos bons personagens construídos com menos estereótipos e mais profundidade. O principal, por exemplo, não é um herói, mas apenas um cara comum. Um pai de família. Os fazendeiros, variam ao longo do filme: há o de bom coração mas que é incapaz de lutar contra a sociedade, há o que sente tesão pela escrava, o que enxerga os negros como animais, o que vê os escravos como bens que devem ser cuidados, e por aí vai.
Nesse meio tempo, Michael Fassbender, Paul Giamatti, Brad Pitt, Benedict Cumberbatch, Alfre Woodard, Sarah Paulson e Paul Dano desfilam na tela, quase todos com interpretações inspiradas – talvez Pitt seja o mais sem graça, até por ter escolhido o personagem mais raso. E temos Lupita N’yongo, com uma carga dramática necessária e de se aplaudir de pé.
O tapa na cara é tão pesado que a culpa vem em toneladas quando o filme termina. Culpa por séculos de podridão. Culpa pela ganância do homem. Culpa pela passividade da sociedade. Culpa para todos os lados.
Fomos inundados nas últimas décadas por uma montanha de livros, filmes, séries e outras produções culturais que martelam as injustiças e o ódio produzidos pelo Holocausto. Nada mais justo. Mas pouco vemos sobre a escravidão, que matou muito mais gente e por muito mais tempo (e, vale lembrar, ainda existe pelo mundo e pelo Brasil em pleno ano de 2014).
Um país como o Brasil precisava de um grande museu sobre o tema. Precisava nos esfregar na cara o tempo todo a dívida que temos com os negros. Precisava ensinar direito na escola, com vergonha. O Dia da Consciência Negra foi um bom começo, depois de mais de um século de esquecimento e limpeza para debaixo do tapete (Leia sobre cotas aqui).
Note que em nenhum momento falei em preconceito. Este não é o assunto do filme. “12 Anos de Escravidão” é sobre injustiça e um passado deprimente da raça humana – e que produz ecos até hoje em nossa sociedade.
Mesmo achando que “Gravidade” foi o grande filme de 2013, por ser um marco do entretenimento e da indústria técnica do cinema, fico muito feliz que ele tenha perdido o Oscar de Melhor Filme para “12 Anos de Escravidão”. Esta sim é uma obra profunda, importante e relevante não só ao cinema, mas à nossa sociedade e, principalmente, à nossa civilização. Quando a arte atinge algo tão abrangente assim, só nos resta aplaudir por alguns minutos e depois refletir pelo resto de nossas vidas.
“12 Anos de Escravidão” é dos filmes mais necessários, perturbadores, emocionantes e viscerais que eu já vi. Veja você também.