Estas são com certeza duas das melhores animações dos últimos anos. E mesmo cada uma optando por trilhar o caminho oposto da outra, ambas têm um mesmo ponto de partida: o amadurecimento.
“Divertida Mente” é a história de uma garota de 11 anos do Minnesota que se muda para São Francisco. Esta reviravolta na vida da criança provocará o amadurecimento dela, deixando de vez a infância para embarcar na puberdade. “O Menino e O Mundo” é a história de um garoto do sertão que foge para a cidade grande em busca do pai, que deixou a família para trabalhar no centro urbano. Esta decisão provocará o amadurecimento dele, deixando a vida lúdica e pacata do interior para encarar a realidade da metrópole. Ou seja, bem parecidos.
Mas “Divertida Mente” opta pelo que há de mais moderno na animação (o 3D), um ritmo ágil de narrativa e edição (o que Hollywood sabe fazer de melhor), uma carga dramática apelativa (mexendo com as próprias histórias de vida do espectador), referências da cultura pop mundial (o que o torna bem norteamericano) e uma visão poliana do mundo: sua infância foi perfeita, mas crescer faz parte, vire adolescente que tudo continuará dando certo.
“O Menino e o Mundo” é mais ousado. Opta por personagens de traço extremamente simples, numa animação clássica em 2D, misturados com os mais variados tipos de técnicas, como colagens, cenas reais documentais e até um pouco de 3D. Opta por um ritmo lento e sem diálogos (ao menos, não compreensíveis), o que dá um toque artístico e maduro para a obra. Opta pela sensibilidade não apelativa: vemos momentos de tristeza que nada mais são do que fatos reais que esquecemos no dia a dia. Opta pela brasilidade e latinidade, seja pelo retrato da sociedade, seja pela beleza e a alegria das manifestações populares. E opta por uma visão pessimista – mas também mais realista – do mundo: a tecnologia e a sede por dinheiro estão estragando nossas vidas.
Ou seja, formas bem distintas. “Divertida Mente” é muito bacana, criativo (a ideia de acompanharmos os sentimentos na mente dos personagens é um case de psicologia e estratégia de marketing), emocionante (quem não vai fazer paralelos com o próprio amadurecimento?) e extremamente bem escrito. Um belo exemplar da máquina de Hollywood.
O engraçado é que “O Menino e o Mundo” critica exatamente esta engrenagem caça-níqueis que nos cria sonhos e imagens de um mundo perfeito, mas inexistente, apenas para consumirmos mais e mais. Afinal, os pais da garotinha de “Divertida Mente”, perfeitos e compreensíveis, não existem, não é? Eu, particularmente, nunca conheci. E a vida dela, mesmo abalada pela mudança de cidade, é a vida do american way of life, algo que pouquíssimas pessoas do planeta Terra têm. (O longa da Pixar ainda ajuda a espalhar preconceitos, ao incorporar a Alegria numa personagem alta, magra, loira e linda, enquanto a Tristeza é uma personagem baixinha, gordinha, feia e de óculos. Vamos lá, Disney, deixem essa idolatria pelo perfeito e coloquem os pés no chão!)
Já ” O Menino e o Mundo” mostra o que há de real na infância da maioria das crianças do globo. Por mais lúdica e divertida que seja – quando se é criança, plantar uma árvore ou tocar uma flauta podem ser as coisas mais divertidas do mundo – uma hora a realidade bate na porta. No caso do garotinho principal, a necessidade do pai em se mudar para a cidade grande.
Enquanto a garotinha de “Divertida Mente” desiste de abandonar sua casa para buscar o que acredita ser a felicidade, o garotinho de “O Menino e o Mundo” faz isso já no começo do filme. Ele quer explorar e conhecer o mundo, pela necessidade de encontrar o pai, enquanto ela quer a segurança e a falsa realidade que a classe social e a família dela construíram. Quem pode culpar a garotinha? Ela é uma das poucas sortudas na Terra que nasceram bem e pouco terão com o que se preocupar ao longo da vida. Enquanto ele é igual à maioria e sofrerá sempre, menosprezado e tratado como mais um.
Ou seja. “O Menino e O Mundo”, com seus traços simples e ausência de diálogos, parece a princípio ingênuo e infantil. Enquanto “Divertida Mente”, com sua grandiosidade, tecnologia e roteiro criativo parece profundo e maduro. Mas é justamente o contrário. Enquanto o mundo exterior de “Divertida Mente” busca o realismo visual, mas mostra a falácia da vida ideal e perfeita, “O Menino e o Mundo” escolhe o visual surreal para tratar do que há de mais contemporâneo e concreto no nosso mundo.
“Divertida Mente” é, como diz o nome, um divertido mergulho em nosso próprio amadurecimento, com certa melancolia, claro, mas com muitas risadas, piadas, referências. É um momento de se desligar do mundo real para se divertir e sonhar. Dentro de sua caixinha enquanto filme comercial para massas, merece e muito as indicações para o Oscar de Melhor Animação e Melhor Roteiro. Deveria, inclusive, estar presente entre os melhores filmes. É um dos mais belos longas da Pixar.
Já “O Menino e o Mundo” é um filme amargo, triste, que provoca um nó desesperador na garganta, mesmo escondido nos traços lúdicos e coloridos da mistura de técnicas. Uma obra bem mais complexa e rica, que com certeza já nasce clássica e se torna uma das grandes referências da animação mundial. Dentro de sua caixinha artística e de crítica social, focada para um público reflexivo e crítico, mereceu o maior prêmio de animação do planeta, no Festival de Annecy.
“Divertida Mente” é o que de melhor a cultura pop comercial norteamericana sabe fazer. “O Menino e O Mundo” é o que de melhor a cultura brasileira (ou latina) de crítica social e reflexão pode entregar.
Claro que “Divertida Mente” é a cara do Oscar, um prêmio da indústria comercial cinematográfica. Mas seria lindo ver “O Menino e O Mundo” levando este troféu. Acompanhemos.
PS: ainda quero ver outro indicado a melhor animação, Anomalisa, do espetacular Charlie Kaufman.