Recentemente escrevi uma comparação entre duas animações que disputam o Oscar deste ano: o blockbuster da Disney/Pixar “Divertida Mente” e o brasileiro independente “O Menino e O Mundo”. Ali, o que chamava a atenção era a maneira inversa que os longas tratavam o lúdico e o real. Aqui, neste outro indicado ao Oscar de Melhor Animação, o buraco é mais embaixo. Apesar de ser sim uma animação feita com bonecos de silicone, o que se busca é o realismo em todos os aspectos.
Para entender, vale lembrar que é um filme escrito e dirigido pelo genial Charlie Kaufman, o roteirista de “Quero Ser John Malkovich”, “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, “Adaptação” e “Confissões de Uma Mente Perigosa”, além de diretor/roteirista de “Sinédoque NY”. Analisando essa filmografia maluca, o que mais encontramos nestes longas de carne e osso são personagens e situações fantasiosas. Temos o andar 81/2, a possibilidade de vivermos na cabeça de um ator, a adaptação do livro que se torna realidade, a metalinguagem da vida do próprio Charlie Kaufman, a tecnologia que apaga memórias etc.
Pois em “Anomalisa” Kaufman, sacana como é, opta pela irrealidade da animação para entregar sua obra mais realista. Sim, temos metáforas estranhas, como quase todos os personagens terem o mesmo rosto e a mesma voz masculina (de Tom Noonan), seja homem, mulher ou criança. Mas isso é algo que está apenas na cabeça do personagem principal, Michael Stone, um bem sucedido escritor de autoajuda de meia idade que vai a Cincinnatti ministrar uma palestra sobre como conquistar o consumidor e aumentar suas vendas em 90%.
Michael – voz do britânico David Thewlis – talvez seja o personagem mais humano já escrito por Kaufman, vivendo a depressão de uma vida no automático movida por atitudes e decisões que a sociedade espera de alguém. O mundo é feio e opressor para ele. Nada é interessante. Nem o chilli característico da cidade que visita, nem conquistas amorosas do passado, muito menos conquistas profissionais do presente. Ele mal acredita no próprio discurso de autoajuda. Precisa de uma motivação para seguir sua vida, precisa de um amor, de algo diferente, de algo que saia da caixinha onde todos somos enfiados pela sociedade. Por isso ele busca o romance idealizado, esse que filmes hollywoodianos, canções de amor e propagandas de TV nos ensinam ser o único que pode nos trazer a felicidade. Michael quer ser arrebatado pela paixão.
Aí é que entra Lisa, personagem que dá nome ao longa e a única, além de Stone, com rosto e voz próprios – Jennifer Jason Leigh cede seus dotes vocais. Ela é espontânea e verdadeira, fala o que vem à mente, demonstra insegurança, aspectos que a sociedade nos ensina a esconder por trás de máscaras – os rostos idênticos que os demais personagens do filme têm. Lisa ainda não usa essas máscaras, talvez por isso praticamente não tenha se relacionado com ninguém em sua vida além de um homem bem mais velho e casado. O mundo não gosta de quem sai da caixinha, de quem é espontâneo e verdadeiro. O mundo quer cordeirinhos que não incomodem. Michael, então, se apaixona por essa personalidade verdadeira e particular e considera a garota uma anomalia da sociedade, uma Anomalisa.
Mas quando ele decide colocá-la na caixinha em que ele acredita ser a ideal para ela – como, por exemplo, a caixinha das pessoas que não falam de boca cheia – e quando ela própria, desesperada ao ver que pode perder Michael, tenta fazer o que se espera dela (citar o zoológico como todo mundo faz, por exemplo), Lisa perde o que tem de verdadeiro e diferente, tornando-se assim mais uma personagem com o mesmo rosto e a mesma voz dos demais.
Por que não somos quem somos de verdade? Por que tentamos nos tornar iguais aos outros, seguir os outros passos, imitar as outras atitudes? Por que não podemos ser verdadeiros? Únicos? Individuais.
O filme é triste, angustiante, incômodo e realista demais. Apesar da técnica em stop motion, não vemos ali personagens visualmente excêntricos como nas animações de Tim Burton, por exemplo. Vemos bonecos que tentam imitar o ser humano, mas de forma bizarra, com vincos no rosto e movimentos característicos da técnica de movimento. Isso torna tudo muito estranho, principalmente quando vemos que as ações e situações são extremamente realistas. Tudo parece bizarro. Seja o nu frontal do personagem principal, seja a cena de sexo oral. Há algumas risadas, claro, mas a profundidade com que toca na ferida do indivíduo é grande demais para se caracterizar a obra como uma comédia.
Um filme contemporâneo, que trata do mal do nosso século de uma forma simples, mas exata. Lento como a depressão, estranho como a sociedade que construímos.
Linda sua resenha, amei o filme justamente por essa coisa realista. No começo eu não estava entendendo por que ele usou animação, isso até me incomodava, mas depois as coisas foram fazendo sentido.
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Legal! Senti a mesma coisa! 😉
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