O escritor Daniel Lisboa foi uma das poucas pessoas que nunca me viu na vida a já ter lido o livro. Indicado pela Editora Kazuá, recebeu a obra e escreveu um prefácio incrível. Sem jamais termos tido qualquer contato, real ou virtual, absorveu a essência do livro e, com poucas palavras, soube traduzir a alma da narrativa. E não é que por acaso, faz pouco tempo, num evento literário num café escondido da Vila Mariana, no balcão do lugar, acabamos nos conhecendo?

Atendente: Sua conta está em que nome?

Eu: Daguito.

Daniel: Você é o Daguito? Daguito Rodrigues?

E trocamos algumas ideias sobre literatura, política e história. Nos adicionamos e, espero, manteremos um bom contato com reflexões regadas a muito assunto e muita cerveja. Daniel, do fundo do coração, obrigado pelo tempo, pela correria e pela dedicação. Para quem quiser conhecer o Prefácio, é este aqui:

“A voz da cabeça e a das ruas

Fiquei triste quando acabei de ler este livro. Mas não se preocupe: não é porque o livro é “deprê” (apesar de estar longe de ser “feliz”) ou porque achei sua história tão ruim que chorei com pena dos esforços do autor em captar minha atenção. Como não fui previamente informado, e tão pouco perguntei, se era uma história autobiográfica ou de ficção, aceitei Vozes na Rua como um relato real. Talvez porque logo fui fisgado pela trama e passei a desejar que aquilo ali tivesse mesmo acontecido. Daí minha frustração ao ser informado que não, eu não poderia tomar uma cachaça com o Cesinha. Bater um papo com a encantadora Lilian ou matar minha curiosidade sobre o destino que Calebe finalmente escolhera.

Admito que me peguei até mesmo buscando o nome de um outro personagem no Google, para conferir se o que acontece com ele no livro era real mesmo, sem me dar conta de que evidentemente não era (e o leitor saberá o motivo). Estou admitindo essas coisas aqui porque, veja só, você pode até ter os seus “poréns” sobre uma história, mas, quando os personagens te pegam, indiscutivelmente você já foi arrastado para dentro dela como o moleque de a “A História sem Fim” (aliás, o primeiro livrão que li na vida).

E este grande mérito não é o único de Vozes na Rua. Outra qualidade admirável num contador de histórias é fazer algo bom a partir de um argumento simples. E põe simplicidade neste romance aqui. É basicamente o relato de alguns dias na vida de um jovem, Artur, que tem certeza que pode ser um grande fotógrafo. Acontece que, como sabe quem vive em uma cidade como São Paulo, talento não basta quando as continhas começam a chegar. Principalmente para esse povo de humanas que teima em fazer um montão de coisa que “não dá dinheiro”. É o velho dilema de sucumbir ao prático e ao necessário ou não, um dilema que só é batido para quem, ao contrário de Artur, já sucumbiu ou faz um esforço tremendo para esquecer que sucumbiu.

Artur não consegue pagar suas contas mais básicas. Divide o apartamento com Cesinha e Lilian, que o amam, mas já estão de saco cheio da situação. Sua família do interior, então, trata as escolhas do jovem como uma insanidade completa. A namorada também não alivia para o perdido Artur.

As pressões da vida real se acumulam e afunilam para o rapaz de mãos bonitas, mas o que poderia ser só um draminha pessoal de um jovem de classe média ganha outra dimensão quando Daguito Rodrigues introduz um elemento no livro: as manifestações de junho de 2013. No romance, elas explodem exatamente quando a vida pessoal de Artur é que parece estar a ponto de explodir. É aí que rola uma simbiose maluca e divertida de duas confusões: a interna, de Artur, e a externa, da vida política e social do país.

Daguito não aproveita o cenário turbulento para dar lições gastas de ativismo ou superação. Ao contrário, mostra a visão de um cara relativamente alienado que é atirado por acaso no meio da confusão. Aqui, é interessante notar como a cena “alternativa” ou “marginalizada” de São Paulo pode ser libertária e fascinante, mas nem por isso deixa de ser repressora e assustadora em alguns momentos.

Outro ponto, esse perceptível e triste para muitos que acompanharam as manifestações de 2013, é notar como aquele movimento se descaracterizou e originou algo que hoje, em vários sentidos, é o inverso do ideal dos que lá estavam naqueles dias tensos. Falar agora que os primeiros sinais dessa mudança, registrados em passagens e diálogos no livro, já apareciam, pode parecer oportunismo. Mas, acredite, corrobora a impressão de muitos que estiveram nas ruas na época.

Vozes na Rua é um romance sobre desejos e frustrações aparentemente simples, mas que deveriam estar presentes em todos aqueles que não fazem a menor ideia do que estão fazendo aqui neste mundo. Porque a real é que, seja tirando foto ou tomando bala de borracha na bunda, ninguém sabe.

Daniel Lisboa é autor do livro “Aberrações Casuais”.”