Eu vou contra a corrente da maioria dos críticos: acho Everything Now, do Arcade Fire, um baita disco, muito mais equilibrado que os tortos Reflektor, The Suburbs e Neon Bible. A grande obra-prima da banda segue sendo Funeral, mas Everything Now é o primeiro desde aquele a apresentar um repertório realmente equilibrado. Tome os três tortos que eu citei: algumas músicas simplesmente não funcionam. Em Everything Now, tudo funciona. Novamente vou contra a corrente e digo até que Peter Pan – considerada pelos críticos talvez a pior música da banda – é uma das melhores do novo álbum. Ritmada, estranha, criativa. Tem um groove diferente.

O Arcade Fire se notabilizou por não lançar apenas um disco de músicas, mas um projeto dramático, quase teatral. O tema da vez é o consumismo e a o imediatismo dessa sociedade capitalista que vive uma revolução tecnológica. Pois os críticos seguiram o caminho criticado no álbum e foram extremamente imediatistas ao analisar Everything Now, repetindo os mesmos bordões e opiniões. É risível ler os textos em blogs e jornais: todos falam a mesma coisa. Essa homogeneização da opinião é uma das críticas que o Arcade Fire faz à nossa sociedade.

Enfim, vejo Everything Now como uma representação do que somos e de como é nosso mundo exatamente para critica-lo. Mas, de novo: é tudo apenas representação, como a capa do álbum deixa bem claro, com um outdoor que completa a paisagem de fundo. A representação do real é a realidade, mas não é.

A vinheta de abertura do disco é um bom convite à sonoridade que virá logo a seguir, servindo de contraponto ao ritmo dançante da canção que dá nome ao disco e que traz claras influências da setentista Abba – a mais óbvia, a frase musical em piano que se repete como em Dancing Queen. É o grande hit de estádio do disco.

Depois, “Signs of Life” traz a melancolia e o mecanicismo da vida urbana na sociedade de consumo, onde vivemos perdendo nosso tempo em filas eternas, em ciclos que se repetem e procurando algum sinal de vida real, sem nunca encontrarmos de verdade. Um tapa na cara. Tudo isso num ritmo dançante, com um belo refrão.

A seguir, a espetacular “Creature Comfort” começa quase como uma música dos primórdios do videogame, que no fim das contas foram também os primórdios da nossa sociedade falsa, consumista, imediatista e vazia, para a seguir entregar toda a grandiosidade tão inerente às músicas da banda. Numa época em que a tecnologia deixa tudo tão acessível que um garoto de 16 anos pode criar um aplicativo e se tornar milionário da noite para o dia ou uma garota de 17 pode lançar um canal no YouTube e ser mais famosa que jogadores, cantores ou atores, o Arcade Fire traduz o desespero dessa juventude que, tendo tantas opções à mão e tanta liberdade, se vê sem tempo para realmente refletir e decidir o que quer da vida. Seja famoso e vença ou seja apenas mais um e sofra. A personagem da canção, uma suicida insatisfeita com o corpo, é o retrato desse jovem. Por isso, o pedido do refrão: “Deus, me deixe famoso/ Se você não puder, apenas deixe menos doloroso”. É isso.

A seguinte é a defenestrada “Peter Pan”, que eu particularmente considero das melhores do disco, com sua batida estranha e elementos que parecem não conversar entre si. Como nós nesse mundo caótico que nos exige pressa ao mesmo tempo que nos obriga a manter nossa juventude intacta. “Seja minha Wendy, eu serei seu Peter Pan / Venha baby, pegue minha mão / Podemos caminhar se não tivermos vontade de voar / Nós podemos viver, eu não sinto vontade de morrer”. No fim, a juventude que devemos manter é na nossa cabeça, na nossa alma.

A que segue é “Chemistry”, para mim, a mais fraca do disco, mas ainda assim, boa, com uma pegada reggae e dançante. Simpática. A frase de abertura, “Eu tenho o dinheiro, e eu tenho o tempo”, simboliza o verdadeiro milionário na sociedade dos anos 10 do século XXI: não basta ser rico se você não puder aproveitar o que tem.

Depois, Infinite Content traz uma levada de punk rock já visitada em outros álbuns. Aqui, de forma mais tímida e rápida, mas não menos potente. O refrão  é uma brincadeira que pode ser lida como “conteúdo infinito” ou também como “satisfação infinita”, ou “infinitamente contente”. E é onde investimos todo o nosso dinheiro, como diz a letra, em conteúdo infinito e excessivo, como se isso trouxesse uma satisfação infinita. Não, não traz. A seguir, vem uma versão mais calma da mesma música.

Depois, “Electric Blue”, das melhores do disco, impressiona pelo swing e pela beleza do arranjo. “Agora não consigo entender minha cabeça / Pensei que tivesse encontrado / Mas descobri que não sei de nada / Agora não consigo entender minha cabeça”. Quem consegue? Quem encontra uma resposta? Clap, clap, clap.

“Good God Damn” vem angustiante e com toques de Bowie, repetindo que talvez nosso Deus seja mesmo maldito, nos entregando um mundo tão esquisofrênico. Quem é esse Deus?

Já fechando o disco, as duas melhores de todo o álbum: Put Your Money On Me, dançante, criativa e ritmada, e “We Don’t Deserve Love”, ritualística, grandiosa e emocionante. A banda enxerga nosso mundo de forma amarga, quase cínica, onde corremos de cá para lá, comprando o que nos oferecem, desamparados e sem qualquer luz no fim do túnel. Não, você não está sozinho nesse desespero. Melhor retrato do momento, impossível. Obras-primas.

Enfim, às vezes esfregar a verdade na cara das pessoas não é bem recebido. Prefere-se jogar tudo para debaixo do tapete em vez de encarar a realidade. O Arcade Fire fez a parte dele, nos ofereceu uma reflexão autêntica, super atual e poética, sem perder a alegria das pistas. Agora, cada um faz o que quiser com ela. Inclusive esquecer e seguir o ritmo caótico da sociedade do consumo. Já eu, prefiro apostar no Arcade Fire. I put my money on them.

E em dezembro tem show no Rio e em São Paulo, para provar que os espetáculos da banda ainda são os melhores, mais emocionantes e mais empolgantes que podemos assistir nessa sociedade do consumo.